“Apenas os pequenos segredos precisam ser guardados, os grandes ninguém acredita” (H. Marshall)

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Os Mundos Antigos, segundo Frithjof Schuon


Em sua obra “Sobre los Mundos Antiguos”, Frithjof Schuon demonstra uma visão especialmente penetrante da fenomenologia cultural da Antiguidade, levantando um quadro bastante completo, à luz da História, do espírito das antigas civilizações, especialmente o da cristandade medieval.

O homem moderno olha para trás com temor e reprovação, sem ter em conta o que eram os valores e as conquistas espirituais da Antiguidade. Apesar do tom do autor ser algo apologético, de podermos desejar que o futuro seja progressivo (e não “cíclico”), mesmo tendo de nos adaptar em alguns pontos, cabe meditar sobre as colocações do sábio, até porque ainda não sabemos bem o quanto temos perdido, ou o quanto teremos de retomar, ou até, se uma crise ainda maior nos forçará a abrir mão de muitas conquistas modernas, de modo que um olhar generoso sobre um largo passado, sempre contribuirá para construir melhor o presente e o futuro.
Devido à clareza da exposição, vamos transcrever algo extensamente os parágrafos, por enriquecer o nosso tema, e comentá-los em certa medida.

Centro e Origem: Fundamentos da Tradição

O autor parte então da idéia capital, de que os Antigos organizavam-se num contexto geográfico-temporal sagrado, central e original -ou pelos menos, bebiam profundamente de mitos e lendas relativos a tais questões:*

“Toda a existência dos povos antigos e no geral dos povos tradicionais está domi­na­da por duas idéias-chaves, as do Centro e da Origem. No mundo espacial em que vivemos, cada valor se refere de alguma maneira a um Cen­tro sagrado que é o lugar onde o Céu tem to­cado a terra; em qualquer mundo humano exis­te um lu­gar on­de Deus se tem manifestado para es­pargir suas graças. O mesmo ocorre com res­peito à Origem, que é o momento quase intem­poral em que o céu se encontrava próximo e as coisas ter­restres eram todavia semi-celestes; mas também, para as civilizações que tem um fun­da­dor his­tó­ri­co, é o período em que Deus falaria, re­no­vando des­­­ta forma a aliança primordial para uma rama da humanidade.”



Para o homem antigo, em meio às instabilidades do mundo e às incertezas do destino, havia um único fator de segurança: a Tradição:

“Ser conforme a tra­dição é per­ma­necer fiel à Origem e por este mo­tivo situar-se no Centro; é manter-se portanto na Pu­reza pri­mei­ra e na Norma universal. No com­por­­ta­men­to dos povos antigos e tradicionais tu­do é explicável, di­reta ou indiretamente, por es­tas duas idéias, que são como os pontos de refe­rên­­cia no mundo inco­men­surável e perigoso das formas e da mudança.”

O Imperialismo Antigo: Síntese cultural e Organização global

Partindo desta idéia de Centro e Origem, era preciso organizar o mundo. Isto muitas vezes daria lugar às conquistas territoriais com o sentido englobar e reunir culturas em nome de Deus, mais ou menos como o Islã tem feito mais recentemente, mas com maior maestria foi realizado pelos Persas a partir de Ciro, que lançou as base para o primeiro império universal, no sentido amplo do termo, seja em seu cosmopolitismo, como na sua abrangência territorial.

“Este gênero de subjetividade mitológica, se se pode expressar assim, permite compreender por exem­­plo, o imperialismo das antigas civi­li­zações, pois não bastaria invocar neste caso a ‘lei da sel­va’, inclusi­ve no que pode ter de ine­vi­ta­velmente bio­lógica e, por conseguinte, de le­­­­gítima; tam­bém se há de ter em conta, antes de qualquer coi­sa (posto que se trata de seres hu­manos), o fato de que cada civilização antiga vive como nu­ma lembrança do Paraíso perdido, o qual se apre­sen­ta –como veículo de uma tra­di­ção imemorial ou de uma Revelação que res­taura a ‘pa­lavra per­dida’– como a ramificação mais direta da ‘idade dos deuses’.”


Alexandre, o Grande

De fato, a Palavra sagrada resume e sintetiza a sabedoria de uma raça, e é a sua posse que permite que o mundo encontre a sua Ordem original, vista seja como revelação doutrinal, seja como mistério iniciático oculto.
Havia um sentido inato de missão, de urgência e de responsabilidade, expressão direta e inequívoca da posse da Alma nos guerreiros da Lei. Em certo sentido, era a presença de um espírito coletivo arraigado, pos­si­vel­mente remanescente de uma tradição tribal extensa, que alimentava parte destas aspirações, na medida em que o sentido de individualismo estava pro­fun­damente identificado ao grupal -"reminiscência das vidas em estágios animais e pré-humanos", diriam talvez alguns esotéricos.

“Em conse­qüên­cia, toda vez é ‘nosso povo’ e ne­nhum ou­­tro que perpetua a hu­ma­ni­da­de primor­dial a par­tir do duplo ponto de vista de sabedoria e das virtudes; e seria preciso reco­nhecer que esta perspectiva não é mais nem me­nos falsa que o ex­clusivismo das religiões ou, no pla­no puramen­te natural, a unicidade empírica de cada ego. Muitos povos não se designam a si mesmos com o nome que outros lhes atri­bu­em, se chamam sim­ples­mente ‘o povo’ ou ‘os ho­mens’; as outras tribos são ‘infiéis’, tem-se des­gar­rado do tronco; grosso modo, este é o critério do Império romano da mesma forma que o da Con­fede­ra­ção dos Iro­queses.”

"Scene from the last of the mohicans-1", Thomas Cole 

Eis a arraigada noção do “povo eleito”, aquele ao qual Deus fala em primeiro lugar, senão de uma forma exclusiva. No moderno esoterismo, temos uma manifestação desta realidade no conceito de “raça-raiz” (e suas sub-raças), aquela raça emergente que se destaca entre as outras, como portadora da verdade da evolução e da energia dinâmica das coisas.
Na realidade, existe toda uma aculturação (diríamos melhor, educação) de sabedoria –não raro malversada, "é natural"–, em torno de idéias centrais e ori­ginais, no sentido de formar uma nova cultura e raça dotada de uma Missão es­pecial. Foi o que vimos com a cultura judaica, e os hebreus não foram nem os primeiros nem os últimos a se considerarem um "povo eleito". Os romanos, por exemplo, já haviam manifestado este espírito, sobretudo a partir de Júlio César, e de certa forma incorporaram a idéia da função divina do Imperador a partir da invasão do Egito, buscando reunir o aspecto religioso ao político.

“O sentido do imperialismo antigo é o de estender uma ‘ordem’, um estado de equilíbrio e estabilidade conforme um modelo divino que ade­mais se reflete na natureza, particularmente no mundo pla­ne­tá­rio; o imperador romano, como o monarca do ‘Império celeste do Me­io’, exerce seu poder graças a um ‘mandato do Céu’. Júlio César, de­­­tentor deste mandato e ‘ho­mem divi­no’ (divus),** tinha consciência do alcan­ce provi­den­cial de sua missão; em sua opinião ninguém ti­nha o direito de oponer-se-lhe; Vercingetorix (ge­ne­ral e chefe gaulês pro­cla­ma­do em 52 a.C. chefe de uma coalizão de povos gau­leses contra César) era para ele uma espécie de herético. Se os povos não romanos eram con­siderados ‘bár­baros’, antes de tudo é porque se colocavam à margem da ‘ordem’; desde o pon­to de vista da pax romana ma­ni­fes­tavam o de­se­quilíbrio, a instabilidade, o caos, a perma­nente ameaça.”

Em certo sentido, Roma assumiria o cetro do Egito, também sob o aspecto es­piritual, afinal havia destituído a glória e a soberania do país do Nilo. E se­ria apenas após a expansão do Im­pério Romano rumo à terra egíp­cia, que os Imperadores de Roma ado­taram uma pos­tura propriamente teocrática. Prossigamos (o itálico acima é nosso):

“Na Cristandade (corpus mysticus) e no Islam (dâr el-islâm), a essência teo­­­crática da idéia imperial aparece com cla­ridade; sem teo­­cracia não se pode falar de civi­lização digna des­te nome. Isto é tão ver­dadeiro que os impe­ra­do­­res romanos, em plena decomposição pagã e a partir de Diocleciano, sentiram a necessidade de divinizarem-se ou deixarem-se divinizar, atri­bu­in­do-se de forma abusiva a qualidade do conquistador dos gauleses, o descendente de Vê­nus.”



É claro que mesmo a modernidade tem mantido certos padrões imperiais, mas já não se encontram geralmente as justificativas religiosas antigas. Pelo contrário, é sempre em nome da expansão material, maculando tantas vezes as culturas que preservam ainda tradições sagradas ou naturalistas, numa malversação completa do sentido universalista do império solar, afrontando seja a natureza como a espiritualidade, base e meta da vida que são...

“A idéia moderna da ‘civi­lização’ não ca­re­ce de relação his­­tórica com a idéia tradicional do ‘império’; mas a ‘ordem’ tem se trans­forma­do em algo puramente hu­mano e profano por com­­pleto, como, por outra parte o demonstra a idéia de ‘progresso’, que é a ne­gação mesma de qualquer origem celestial; de fato, a ‘civili­za­­ção’ não é senão o re­­­fina­­mento ci­da­dão no mar­co de uma perspectiva mundana e mercantil, o que explica sua hostilidade tanto para a natur­eza virgem como para a religião. Segundo os cri­­té­rios da “civilização”, o ermitão contem­pla­tivo –que representa a espi­ritualidade humana e ao mesmo tempo a santidade da natureza vir­gem– não pode ser mais que uma espécie de ‘sel­­vagem’, quan­do na realidade é o teste­munho terrestre do Céu.”

Poder Temporal e Poder Espiritual

Esta secularização resulta de um complexo processo dialético entre poder temporal e religioso, que terminou quase banindo o fundo espiritual da Civili­zação. Tal dicotomia é própria da época fragmentária das instituições que foi toda a Era Cristã, nas Idades de Bronze e de Ferro da Civilização.

“Estas considerações nos permitem fazer neste momento algumas precisões sobre a comple­xi­dade da autoridade na Cristandade do Oci­dente. O im­perador encarna frente ao Papa o poder temporal, mas isto não é tudo; representa tam­bém, pelo fato de sua origem pré-cristã e não obstante celeste,*** um as­pecto de universalidade, enquanto que o Papa se identifica por sua função unica­mente à religião cristã.

Santo Tomás de Aquino formularia em A Monar­quia, a doutrina da subserviência do poder real ao Pa­­pa­do, imagem do Império divino que é em sua Uni­cidade. Mas a virtual divisão de poderes resultava en­tão, de não ser o reino de Cristo deste mundo na­que­­le período ou idade histórica, ao contrário de cer­tas tradições "pagãs" que tinham em vista épocas de maior integração, passadas ou futura. Prossigamos, todavia:

“Os mu­çul­manos na Espanha não se­riam perse­guidos senão a partir do momento em que o clero havia che­gado a ser de­masiado pode­ro­so frente ao po­­der temporal; este, que é com­pe­tência do imperador, repre­senta neste caso a uni­ver­salidade e o ‘re­alismo’ e, ­por­t­anto, a ‘tole­rân­cia’, e por con­se­qüên­cia também, pela força das coi­sas, cer­to ele­mento de sa­be­doria. Esta ambi­güi­dade da fun­ção imperial –da que os im­peradores ti­­ve­ram con­sciência em um ou noutro nível– ex­pli­ca em parte o que po­deríamos denominar o tra­di­cional de­sequilíbrio da Cristandade; e po­­deria dizer-se que o Papa reconheceu esta ambigüidade**** –ou este as­pecto de su­pe­ri­oridade que paradoxal­men­­te acompanha a inferio­ri­da­de– ao prostrar-se ante Car­los Magno após sua coroação.”*****


Carlos Magno

Tudo isto reflete a complexidade da relação entre poder real e poder sacerdotal, no contexto profundamente dicotomizado da Era de Peixes, gerando alianças muitas vezes frágeis e instáveis. É um fato que a religião ostenta a condição humana mais elevada; não obstante, vale notar que a classe-dharma do ciclo áryo, era realmente a aristocracia -tal como na nova raça que surge a partir de 2012, será efetivamente a do sacerdócio.

Com relação ao episódio citado acima, na verdade o ato do Papa Leão III foi um gesto de extrema argúcia da Igreja, simbolizando o espírito de adaptação que animaria esta dinâmica ins­ti­tui­­ção durante toda a Idade Média, e mais além. A Igreja sempre teve ne­ces­si­dade de apoiar-se no poder temporal. A soma de dois fatores, a ascen­são do Cris­tianismo e as sucessivas invasões bárbaras do Norte na Europa, terminariam minando de morte o Império Ro­mano, e desde aí, com o desmantelamento da exímia organização imperial ro­mana, teve início um período de trevas na Ci­vilização, onde a pouca luz que havia se originava realmente dos claustros e das universidades católicas (como também ocorreu no Tibete recente).

A chegada dos bárbaros trouxe um novo vigor à Cristandade, resgatando a sua dimensão aristocrática. Adotando instituições locais como o feudalismo e a própria religião européia, estes bárbaros não apenas racharam o Islã em batalhas me­mo­ráveis como Poitiers, vencida pelo rei franco Carlos Martel (avô de Carlos Magno), como traziam certas tra­­­dições reais que uniam vínculos sagrados (o “as­pecto de universalidade” pa­gã de que trata Schuon, acima). Ora, Carlos Magno jul­gava dispen­sável a ‘ben­ção’ da Igreja para o seu Império, e qual não foi a sua surpresa quando o Pa­pa o coroou, algo informalmente, numa simples Missa de Natal! Fazendo isto, o Papa pode subordinar de certa forma o Império do Ocidente a Roma -pelo menos, até que a própria Igreja decaísse profundamente e os reis recu­pe­rassem uma moral superior.

O "Mal Menor" imperial e a falácia anárquica

De qualquer forma, o espírito imperial teve em muitos casos um sentido "protetor", mesmo que, como é "natural", tantas vezes isto tenha sido usado como subter­fúgio, como observamos inclusive em tempos muito recentes...

“O imperialismo pode vir do céu ou simples­mente da terra, ou mesmo do inferno; em qualquer caso, é certo que a humanidade não po­­de manter-se dividida numa pulverização de tribos inde­pen­dentes; os maus se arrojariam ine­vitavelmente so­bre os bons e o resultado seria u’a hu­ma­nidade o­­pri­mida pelos maus e, portan­to, o pior dos impe­ri­alismos. O imperia­lismo dos bons, se assim se po­de di­zer, constitui-se pois nu­ma es­pécie de guer­ra pre­ventiva inevitável e pro­­videncial; sem ele não é concebível nenhuma grande civilização.”******



Pode-se dizer que tudo isto representa uma espécie de "mal menor", ou mesmo um "mal necessário" de­vido à própria imperfeição humana, pelo menos ao nível de cristandade histórica. De certa forma, a opção tem sido as trevas da desordem social e a falta de organização em geral.

“Se nos fa­zem a observação de que tudo isto não nos faz sair da imperfeição hu­­mana o acei­tamos; longe de preconizar um ‘angelismo’ quimé­rico, re­gis­tra­­mos o fato de que o homem sempre é o homem des­de que as co­letividades com seus inte­res­ses e paixões entram em jogo; os condutores de ho­mens estão absolutamente obrigados a ter isto em conta, ainda que desgoste àqueles ‘idealistas’ que es­ti­mam que a ‘pureza’ de uma religião consiste em sui­­­ci­dar-se.”

Devemos então ser realistas e reconhecer a interdependência dos po­deres, quando ela não pode ser realmente unificada como seria o ideal sinárquico. De resto, o apoio mútuo tem servido sempre para legitimar o poder temporal e, recipro­ca­mente, para difundir a religião, resultando num Todo que se revela razoa­vel­mente positivo:

“E isto nos conduz a uma verdade que es­tá de­ma­si­a­do perdida de vista pelos pró­prios crentes: que a religião como fato cole­tivo forço­sa­mente se apóia sobre o que a sustém de uma ma­nei­ra ou de outra, sem por isto perder nada de seu conteúdo dou­trinal e sacramen­tal nem da impar­ci­alidade que resulta disto; pois uma coisa é a Igreja como or­ga­nis­mo social e ou­tra o depósito divino, o qual subsiste por defi­nição mais além das intrigas e ser­vidões da na­tu­reza humana individual e co­­­le­ti­va. Querer mo­dificar o arraigo terrestre da Igreja –ar­raigo que o fenômeno da san­tidade compensa com vanta­gens– leva a de­teriorar a religião no que tem de essencial, conforme a receita ‘idealista’ se­gun­do a qual o me­io mais seguro de cura é matar o pa­­ciente.”

Neste ponto, o sábio investe contras as tentativas modernas ou recentes, no sentido de banir a religião e promover uma sociedade secular "superior" e "pura", independente do sagrado e da ordem religiosa – uma utopia que, de resto, já se revelou vã, porque peca por pretender dispensar a intermediação superior, quando na verdade a verdadeira vocação espiritual é algo raro e nobre e o princípio de hierarquia tampouco pode ser dispensado.

“Em nossos dias, na inten­ção de ele­var a so­ciedade humana ao nível do ideal religioso, se re­­­baixa a religião ao nível do que é huma­namente a­cessível e ra­cio­nal­mente re­alizável, mas que nada é, tanto desde o ponto de vista de nossa inteligência in­­­te­gral como de nossas possibilidades de imor­ta­li­dade. O exclusiva­mente hu­ma­no, longe de poder-se manter em equilíbrio, conduz sempre ao in­­fra-humano.”

Cosmologia e Escatologia

Volta então Schuon, a repisar o espírito cosmológico e cíclico dos Antigos, para tratar do sentido de Finalidade superior que animava estes esforços de civilização sagrada. Para o espírito religioso, as transformações podem ser vistas como progresso, pois se o progresso é tolerado em nível global, é porque já pode ser considerado um quadro final escatológico no qual, sem dúvida, a intervenção divina se torna iminente e até providencial...

“Para os mundos tradicionais, situar-se no espaço e no tempo significa, respectivamente, colocar-se dentro de uma cosmologia e uma esca­to­logia; o tempo não tem sentido mais que pela perfeição de origem que se trata de manter e com vistas ao estalido final que nos projete qua­se sem transição aos pés de Deus. Se no tempo às vezes ocorrem desenvol­vi­mentos que se poderiam tomar por pro­gres­sos caso se lhes isolasse do conjunto –na for­mu­lação dou­trinal, por exemplo, ou sobretudo na arte que tem neces­sidade do tempo e da expe­ri­ên­cia para madurar– nunca é porque na Tra­dição se su­po­­nha que chegue a ser diferente ou melhor, se­não pelo con­trário, por­que quer permanecer ela mesma de modo completo ou ‘chegar a ser o que é’, ou com outras palavras: porque a humanidade tra­­dicional quer mani­festar ou exte­riorizar em um certo plano o que traz em si mesma e corre o risco de perder, aumentando este perigo com o de­sen­volvimento do ciclo que forçosamente con­duz à de­cadência e ao Juízo.”



A Austeridade e crescimento espiritual

O contraste entre simplicidade e refinamento é um dos traços que, paradoxal­mente, pode revelar o índice da espiritualidade. O espírito franciscano, que reviveu o despojamento do Cristo, na pobreza e no espírito de comunhão da cristandade primitiva, pode remodelar a Igreja. Mas com a aproximação do poder temporal, sempre vimos o nascimento da tradução exterior do espírito e, quiçá, a perda dos elos mais simples e a pureza original.

“É, em soma, toda nossa crescente debilidade e com ela o risco do esquecimento e da traição, o que nos o­bri­ga a exteriorizar ou fazer ex­­­plí­cito o que na ori­gem estava incluído numa perfeição interior e im­­­plícita; São Pau­lo não tinha neces­sidade nem do tomismo nem das ca­tedrais, pois to­das as pro­fun­didades e to­­dos os esplendores se en­con­tra­vam em si mes­­mo e ao seu redor na san­tidade da comu­ni­dade pri­mi­ti­va. E isto, lon­­ge de sustentar a icono­clas­tia de qualquer gênero, se vol­ta perfei­ta­mente contra ela: as épocas mais ou menos tardias –e a Ida­­de Média era uma de­las– têm necessidade de uma maneira impe­ri­o­­sa das ex­te­riorizações e de­sen­volvi­men­tos. Exatamente como a água de uma fonte, a fim de perder-se no curso de seu ca­mi­nho, necessita um ca­nal feito pela natureza ou a mão do ho­mem; e assim como o canal não trans­for­ma a água nem se espera que o faça –pois nenhuma água é me­lhor que a água do manancial–, as ex­te­ri­­orizações e desenvolvimentos do patrimô­nio es­pi­ritu­­al estão, não para alterar este último, se­não para trans­­mi­tí-lo da maneira mais íntegra e eficaz possível.”

O homem moderno olha para trás com temor e reprovação, sem ter em conta o que eram os valores e as conquistas espirituais da Antiguidade. As próprias dificuldades da vida representavam para o homem antigo um motivo para olhar para Deus. E não tem sido este sempre o sentido das "prova­ções" do ca­­­­mi­­nho iniciático? É certo que o religioso é vocacional; mas também é verdade que uma certa austeridade sempre será positiva –sobretudo quando tivermos a Natureza por moldura...

“Nos tempos antigos, tão desacreditados em nos­sa época, os rigores da existência terrestre, incluída a perversidade dos homens, eram acei­tos no final das contas como uma fatalidade ine­lu­tável e, por ou­tra par­te, se cria com razão que é impossível abo­li-los de fato; em meio às pro­vas da vida não se esqueciam as do mais além, e além disto se ad­­­mi­tia que o homem tem necessidade aqui embaixo tanto do sofrimento como do prazer e que uma co­letividade não po­­de manter-se no temor a Deus e na piedade apenas no contato com as satis­fações...”

O excessivo processo civilizatório e a criação de luxo e facilidades tende, pelo contrário, a promover a decadência moral. Mas também é verdade que a Civilização conheceu Idades de Ouro em que eram compatíveis, num nível superior de civilização, um conforto relativamente elevado e também uma espi­ritualidade crescente. A chave, para isto, seria a definição de instituições so­lares, assim como o respeito e a organização do povo em torno destes valores sagrados.

“À luz desta sabedoria elementar, um pro­gres­so condicionado pela in­diferença espiritual e a idolatria do bem-estar tomado como um fim em si mes­mo, não poderia constituir uma vantagem real, quer dizer, pro­porcionada à nossa natureza total e a nosso nú­cleo imortal... a civi­li­zação moderna dá para quitar; dá o mundo mas quita a Deus: e isto é o que compromete seu dom de mundo.”

Quer dizer, como já temos bem claro em nossos dias, a falsa civilização do materialismo, compromete a harmonia do mundo e toda a possibilidade de nele se viver. O conforto artificial cobra um preço muito alto, começando por roubar a alma e depois por desalojar o próprio mundo dos horizontes da raça. Por isto toda Kali Yuga termina num cataclismo ambiental que, não obstante, depura a Terra, porque toda a crise contém as sementes da sua regeneração. Prossegue o autor:

“Em nossos dias se tem mais que nunca a ten­dên­cia a reduzir a felicidade à segurança econô­mica –pelo mais, insaciável face à criação inde­fi­ni­da de ne­ces­sidades artificiais e a baixa mística da inveja–, mas o que se per­de totalmente de vista ao projetar esta pers­pectiva no passado é que o ofí­cio tradicional e o contato com a natureza e as coi­­sas naturais são os fa­tores essenciais da feli­ci­da­de humana. Semelhantes fatores desa­parecem na indústria, que exige com de­ma­­siada freqüência, se não sem­pre, um am­­bi­en­­te de­su­mano e mani­pu­lações quase ‘abs­tra­tas’, ges­tos sem inte­li­gibi­li­da­de e sem alma, tu­do isto dentro de uma at­mos­fera de astúcia con­­gelada; chegando-se sem dúvida às antípo­das do que o Evan­­gelho entende ao orde­nar o ‘fa­zer-se como crianças’ e não ‘preo­cupar-se com o porvir’.”



Podemos caracterizar o “ofí­cio tradicional” dentro das classes tradicionais: servidor, mercador, guerreiro e sacerdote. Tudo isto enquadrado pelos recursos naturais e sem maior apelo à industrialização. De fato, esta austeridade chegou a gerar toda uma filosofia de renúncia que gerou o próprio espírito da Idade Média, na medida em que levava a população para os claustros, culminando com a criação das Ordens de cavalarias e seu emprego nas “guerras santas”. Estes formaram o espírito que mais tarde edificaria a nobreza das novas Monarquias nacionais. Num certo sentido, a cavalaria expressa o grande ideal de uma época do mundo: a nobreza.

“Para o antigo cavaleiro não havia no fundo mais que esta alternativa: o risco da morte ou a re­núncia ao mundo; a grandeza da responsabili­dade, do ris­co ou do sacrifício, coincide com a qua­­lidade da ‘no­breza’; viver nobremente é vi­ver em compa­nhia da morte, seja carnal ou es­pi­­ritual. O cavaleiro não tinha o direito de per­der de vista as fissuras da existência; obrigado a ver as coisas desde o alto, sempre devia roçar com seu nada. Ademais, para poder dominar aos outros é preciso saber dominar-se a si mes­mo; a dis­ciplina interior cons­titui a qua­li­ficação essen­ci­al para as funções de chefe, juiz e guer­­reiro. A no­breza verdadeira, que pelo mais não po­deria ser o mono­pó­lio de uma função, implica a cons­ci­ência penetrante da natureza das coisas ao mesmo tempo que um generoso dom de si mes­mo, excluindo tanto as quimeras como as baixezas.”



Assim, o guerreiro é um nobre e sua espada é uma balança, sempre pronta a pesar o seu valor. O guerreiro busca o equilíbrio entre o céu e a terra, emergindo assim como um intermediário ideal para conectar a Hierarquia e servir como líder nas nações. Daí será sua tarefa capital numa sociedade, a tal ponto que a Idade Média podia prescindir da classe dos comerciantes, mas não podia dispensar os cavaleiros, sob pena daquele mundo sucumbir interna a externamente.

Da obediência religiosa

A anarquia é um traço incompreensível à Tradição, pois traduz um princípio de caos, de desordem e de alienação. Pelo contrário, a unidade da ordem tradicional, demanda uma participação e a integração de todos. Onde existe a primazia do cânone, não há espaço para a “heresia da separatividade”. A submissão à autoridade legítima, tem um sentido superior porque se encontra direcionado: 1. ao sagrado, 2. ao coletivo. E sempre nesta ordem.

“Estas considerações nos conduzem ao pro­ble­ma crucial da obe­di­ên­cia, tão essencial nas civili­za­­ções normais e tão pouco compreen­dida pe­los modernos, que no entanto a admitem sem esforço quando se tra­ta da disciplina cole­tiva, ain­da que fosse em detri­mento, em certas oca­­siões, dos di­rei­tos espirituais mais elemen­tares. A obediência é em si mesma um meio de per­fei­ção interior, à con­dição de que esteja intei­ra­mente emol­durada pela religião, como su­ce­de em todos os mundos tra­­dicionais. Neste mar­co, o homem sempre deve obe­decer de qual­quer modo a alguém ou algo, ain­da quando fosse unicamente à Lei Sa­­gra­da e à consciência se se trata de um príncipe ou um pon­tí­fice; nada nem ninguém é inde­pen­den­te de Deus.

A hierarquia social é um reflexo da “obediência interior” das classes superiores, sua capacidade inata de seguir os ensinamentos dos profetas, como aquilo que unicamente as define efetivamente como tal, ao lado da sua unidade operativa inerente.

“A subordinação das mulheres, das crianças, dos in­feriores e dos servidores se inserta com toda a nor­ma­lidade dentro do sistema de obe­diências múl­tiplas como que está formada a sociedade re­ligiosa; a dependência do próximo pode ser um destino pe­­noso, mas sempre tem um sentido religioso, como tam­bém a pobreza, que implica por sua natureza um significado semelhante. Desde o pon­to de vista da re­ligião, os ricos e os inde­pen­den­tes nunca são por definição os feli­zes... Por uma parte, a religião está para trans­formar aos homens que que­rem deixar-se trans­for­mar, mas por outra, deve tomar aos homens tal como são, com todos seus direitos naturais e seus defeitos coletivamente inar­rai­gáveis, sob pe­na de não poder subsistir em um meio humano.”



O homem tem um plano divino a cumprir na terra. Esquecer do Criador é tornar em nada a existência. Ou, como diz a Bíblia, são vidas que servem apenas como a lenha da fogueira, nunca como um fim em si mesmas. O que importa em qualquer civilização, é unicamente aquilo que é realizado em nome do Superior.

“Nesta ordem de idéias há outra reflexão que se impõe, goste-se ou não: uma sociedade não apre­senta nenhum valor por si mesma ou pelo sim­ples fato de sua existência; disto resulta que as vir­tu­des sociais na­da são por si mesmas fora do con­texto espiritual que as orienta para nossos fins úl­ti­mos; pretender o contrário é falsear a própria defi­ni­ção do homem e do humano. A Lei su­pre­ma é o amor perfeito de Deus –amor que deve com­pro­me­ter todo nosso ser, segun­do as Escrituras–, e a se­gunda Lei, a do amor ao pró­ximo, é ‘semelhante’ à primeira; agora bem, ‘se­­melhante’ não significa ‘equi­valente’ e muito menos ‘superior’, senão ‘do mes­mo espírito’: Cris­­to quer dizer que o amor de Deus se mani­festa extrin­se­ca­mente pelo amor ao pró­ximo, ali onde existe um próximo, quer dizer: não po­de­mos amar a Deus odiando a nossos seme­lhantes. Conforme nossa natureza humana integral o amor ao próximo não é nada sem o amor de Deus, retira todo o conteúdo deste amor e não tem sen­tido senão por ele; sem dú­vida, amar a cri­­a­­tura é igualmente uma forma de amar ao Cri­ador, mas com a expressa condi­ção de que sua ba­­se seja o amor di­reto de Deus, pois senão, a se­­gunda Lei não seria a segunda, e sim a pri­mei­ra... Esta relação se transluz –às vezes de maneira im­­perfeita, mas sempre reco­nhecível quan­to ao prin­­­cípio–, dentro de todas as civili­zações tradi­cionais.”

Com isto, Schuon que enfatizar que amar a humanidade sem amar o Criador, pouco ou nenhum valor teria, porque isentaria de transcendência este amor, e seria quase um sentimentalismo e um apego, de todo modo um arroubo que oculta um orgulho e uma ignorância no tocante ao superior, apesar de alguém manifestar bons sentimentos. Aquele que realmente se preocupa com o mundo é o Salvador, são os divinos renunciantes, os Bodhisatwas, capaz até mesmo de ressuscitar por amor do próximo, capacitando-se assim a salvar a todos. Mas, em todas as épocas, existe a presunção dos fariseus que se julgam sábios, embora ignorem as grandes verdades reveladas e anunciadas, pseudo-iniciados que emergen nas épocas de transição sob o chamado geral da crise, cegos de um olho que se julgam condutores de alguns cegos completos, sem mais importar o resto do mundo...

De fato, a relativa primazia do Primeiro Mandamento, é que dá alicerce ao Segundo e a outros que eventualmente surgirão, pois podemos amar ao próximo de forma especial porque amamos a Deus nele, tal como na saudação hindu Namastê, ou “o Deus em mim saúda o Deus em você”.

Neste caso, os animais entram naturalmente numa outra categoria, assim como o conjunto da Criação que, todavia, também se destina, numa outra esfera, a uma nova revelação. De fato, considerar o ser humano como detentor da semente do sagrado, ainda não soa tão difícil porque existem os relatos dos mestres e os exemplos dos santos. Detentor do livre-arbítrio, o ser humano pode se equiparar a anjos e a demônios. Já a Criação, isto é, a “Natureza naturata”, integra uma esfera todavia mais misteriosa que o ser humano tenderia a considerar “inferior” por não expressar um livre-arbítrio. Contudo, haveria muito a conhecer e a repensar também aqui, porque a Natureza entra numa outra categoria de coisas, mas integra não obstante o Plano geral da evolução e, acima de tudo, também está ligada à força suprema no Universo, que é Deus.

Quando olhamos um automóvel, podemos dizer que o único realmente dinâmico ali é o motor e as rodas, ou mesmo algo mais. Talvez para um inseto instalado próximo às rodas, estas sejam as únicas que para ele tem algum dinamismo. Porém, numa visão maior e exterior, todo o arcabouço do carro integra uma elaboração, se move e tem a sua função.
Assim, é possível ver Deus em tudo, se se quer, pois tudo no Universo tem movimento e a semente da vida. O homem que tem esta consciência, pode caminhar no rumo da sua evolução com segurança, porque está no caminho da Verdade, mesmo que esta seja revelada aos poucos. Conclui o autor:

“Nenhum mundo é perfeito, mas qualquer mun­do humano deve possuir meios de perfei­ção. Um mun­do tem valor e legitimidade pelo que realiza pe­­lo amor a Deus e nada mais; pelo ‘amor de Deus’ entendemos em primeiro lugar a eleição da Ver­­dade e depois a direção da von­ta­de: a Verdade que nos torna conscientes do re­­al absoluto e trans­cen­­dente –seja pessoal ou suprapessoal– e a von­ta­­de que se liga a isto e re­co­nhece sua própria es­­sência sobrenatural e seus fins últimos.”


Uma exegese de Luís A. W. Salvi, da obra "Tradição & Transmissão", Editorial Agartha


* Frithjof Schuon, Sobre los Mundos Antiguos, Biblioteca de Estudios Tradicionales, Taurus Ed., Madrid, Espanha. Os parágrafos transcritos pertencem ao Capítulo 1, Mirada Sobre los Mundos Antigüos.
** "Esse é o homem, esse é aquele de que tantas ve­zes tens ouvido a prometida chegada, César Au­gus­to, filho de um Deus, que fundará de novo a idade de ouro nos campos donde Saturno reinou antanho e que estenderá seu império até os Garamantes e so­bre os Indus" (Eneida VI, 791-5). César preparou um mundo para o reino de Cristo. Assinalemos que Dante coloca os assasinos de César no mais profundo do inferno, em companhia de Judas. Cf. "Divus Julius Caesar", de Adrian Paterson, em Les Études Traditio­na­les, junho de 1940.”
*** “Dante não hesita em servir-se desta origem so­bre­humana para sustentar sua doutrina da monarquia imperial.”
**** “Isto não apresenta dúvidas nem no que se refere a Constantino nem a Carlos Magno.”
***** “Há uma curiosa relação –seja dito de passagem– entre a função imperial e o papel do louco da corte, e esta relação parece manifestar-se no fato de que a in­dumentária dos loucos, como a de alguns im­pe­radores, estava adornada com campanhias, à seme­lhan­ça do vestido sagrado do Grande Sacerdote: o pa­pel do louco consistia na sua origem em dizer pu­bli­camente o que ninguém se permi­tia expressar, e in­troduzir deste modo um elemento de verdade num mundo forçosamente obrigado a inevitáveis con­ven­ções; de modo que esta função, queira-se ou não, faz pensar na sapiência ou no esoterismo propria­men­te dito, que à sua maneira rompe as "formas" em nome do "espírito que sopra onde quer".
****** “Poderia parecer que a decadência espiritual dos romanos se opusesse a uma missão de império, mas não foi assim, posto que este povo possuía as qua­li­dades de força e generosidade –ou tolerância– re­que­­­ridas para este papel providencial. Roma perseguiu aos cristãos porque estes ameaçavam tudo o que, aos olhos dos antigos, constituía Roma; se Diocleciano hou­vesse podido prever o edito de Teodósio abolindo a religião romana, não haveria atuado de modo di­fe­rente do que fez.”
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