Em sua obra “Sobre los Mundos Antiguos”, Frithjof Schuon demonstra uma visão especialmente penetrante da fenomenologia cultural da Antiguidade, levantando um quadro bastante completo, à luz da História, do espírito das antigas civilizações, especialmente o da cristandade medieval.
O homem moderno olha para trás com temor e reprovação, sem ter em conta o que eram os valores e as conquistas espirituais da Antiguidade. Apesar do tom do autor ser algo apologético, de podermos desejar que o futuro seja progressivo (e não “cíclico”), mesmo tendo de nos adaptar em alguns pontos, cabe meditar sobre as colocações do sábio, até porque ainda não sabemos bem o quanto temos perdido, ou o quanto teremos de retomar, ou até, se uma crise ainda maior nos forçará a abrir mão de muitas conquistas modernas, de modo que um olhar generoso sobre um largo passado, sempre contribuirá para construir melhor o presente e o futuro.
Devido à clareza da exposição, vamos transcrever algo extensamente os parágrafos, por enriquecer o nosso tema, e comentá-los em certa medida.
Centro e Origem: Fundamentos da Tradição
O autor parte então da idéia capital, de que os Antigos organizavam-se num contexto geográfico-temporal sagrado, central e original -ou pelos menos, bebiam profundamente de mitos e lendas relativos a tais questões:*
“Toda a existência dos povos antigos e no geral dos povos tradicionais está dominada por duas idéias-chaves, as do Centro e da Origem. No mundo espacial em que vivemos, cada valor se refere de alguma maneira a um Centro sagrado que é o lugar onde o Céu tem tocado a terra; em qualquer mundo humano existe um lugar onde Deus se tem manifestado para espargir suas graças. O mesmo ocorre com respeito à Origem, que é o momento quase intemporal em que o céu se encontrava próximo e as coisas terrestres eram todavia semi-celestes; mas também, para as civilizações que tem um fundador histórico, é o período em que Deus falaria, renovando desta forma a aliança primordial para uma rama da humanidade.”
Para o homem antigo, em meio às instabilidades do mundo e às incertezas do destino, havia um único fator de segurança: a Tradição:
“Ser conforme a tradição é permanecer fiel à Origem e por este motivo situar-se no Centro; é manter-se portanto na Pureza primeira e na Norma universal. No comportamento dos povos antigos e tradicionais tudo é explicável, direta ou indiretamente, por estas duas idéias, que são como os pontos de referência no mundo incomensurável e perigoso das formas e da mudança.”
O Imperialismo Antigo: Síntese cultural e Organização global
Partindo desta idéia de Centro e Origem, era preciso organizar o mundo. Isto muitas vezes daria lugar às conquistas territoriais com o sentido englobar e reunir culturas em nome de Deus, mais ou menos como o Islã tem feito mais recentemente, mas com maior maestria foi realizado pelos Persas a partir de Ciro, que lançou as base para o primeiro império universal, no sentido amplo do termo, seja em seu cosmopolitismo, como na sua abrangência territorial.
“Este gênero de subjetividade mitológica, se se pode expressar assim, permite compreender por exemplo, o imperialismo das antigas civilizações, pois não bastaria invocar neste caso a ‘lei da selva’, inclusive no que pode ter de inevitavelmente biológica e, por conseguinte, de legítima; também se há de ter em conta, antes de qualquer coisa (posto que se trata de seres humanos), o fato de que cada civilização antiga vive como numa lembrança do Paraíso perdido, o qual se apresenta –como veículo de uma tradição imemorial ou de uma Revelação que restaura a ‘palavra perdida’– como a ramificação mais direta da ‘idade dos deuses’.”
Alexandre, o Grande
De fato, a Palavra sagrada resume e sintetiza a sabedoria de uma raça, e é a sua posse que permite que o mundo encontre a sua Ordem original, vista seja como revelação doutrinal, seja como mistério iniciático oculto.
Havia um sentido inato de missão, de urgência e de responsabilidade, expressão direta e inequívoca da posse da Alma nos guerreiros da Lei. Em certo sentido, era a presença de um espírito coletivo arraigado, possivelmente remanescente de uma tradição tribal extensa, que alimentava parte destas aspirações, na medida em que o sentido de individualismo estava profundamente identificado ao grupal -"reminiscência das vidas em estágios animais e pré-humanos", diriam talvez alguns esotéricos.
“Em conseqüência, toda vez é ‘nosso povo’ e nenhum outro que perpetua a humanidade primordial a partir do duplo ponto de vista de sabedoria e das virtudes; e seria preciso reconhecer que esta perspectiva não é mais nem menos falsa que o exclusivismo das religiões ou, no plano puramente natural, a unicidade empírica de cada ego. Muitos povos não se designam a si mesmos com o nome que outros lhes atribuem, se chamam simplesmente ‘o povo’ ou ‘os homens’; as outras tribos são ‘infiéis’, tem-se desgarrado do tronco; grosso modo, este é o critério do Império romano da mesma forma que o da Confederação dos Iroqueses.”
Eis a arraigada noção do “povo eleito”, aquele ao qual Deus fala em primeiro lugar, senão de uma forma exclusiva. No moderno esoterismo, temos uma manifestação desta realidade no conceito de “raça-raiz” (e suas sub-raças), aquela raça emergente que se destaca entre as outras, como portadora da verdade da evolução e da energia dinâmica das coisas.
Na realidade, existe toda uma aculturação (diríamos melhor, educação) de sabedoria –não raro malversada, "é natural"–, em torno de idéias centrais e originais, no sentido de formar uma nova cultura e raça dotada de uma Missão especial. Foi o que vimos com a cultura judaica, e os hebreus não foram nem os primeiros nem os últimos a se considerarem um "povo eleito". Os romanos, por exemplo, já haviam manifestado este espírito, sobretudo a partir de Júlio César, e de certa forma incorporaram a idéia da função divina do Imperador a partir da invasão do Egito, buscando reunir o aspecto religioso ao político.
“O sentido do imperialismo antigo é o de estender uma ‘ordem’, um estado de equilíbrio e estabilidade conforme um modelo divino que ademais se reflete na natureza, particularmente no mundo planetário; o imperador romano, como o monarca do ‘Império celeste do Meio’, exerce seu poder graças a um ‘mandato do Céu’. Júlio César, detentor deste mandato e ‘homem divino’ (divus),** tinha consciência do alcance providencial de sua missão; em sua opinião ninguém tinha o direito de oponer-se-lhe; Vercingetorix (general e chefe gaulês proclamado em 52 a .C. chefe de uma coalizão de povos gauleses contra César) era para ele uma espécie de herético. Se os povos não romanos eram considerados ‘bárbaros’, antes de tudo é porque se colocavam à margem da ‘ordem’; desde o ponto de vista da pax romana manifestavam o desequilíbrio, a instabilidade, o caos, a permanente ameaça.”
Em certo sentido, Roma assumiria o cetro do Egito, também sob o aspecto espiritual, afinal havia destituído a glória e a soberania do país do Nilo. E seria apenas após a expansão do Império Romano rumo à terra egípcia, que os Imperadores de Roma adotaram uma postura propriamente teocrática. Prossigamos (o itálico acima é nosso):
“Na Cristandade (corpus mysticus) e no Islam (dâr el-islâm), a essência teocrática da idéia imperial aparece com claridade; sem teocracia não se pode falar de civilização digna deste nome. Isto é tão verdadeiro que os imperadores romanos, em plena decomposição pagã e a partir de Diocleciano, sentiram a necessidade de divinizarem-se ou deixarem-se divinizar, atribuindo-se de forma abusiva a qualidade do conquistador dos gauleses, o descendente de Vênus.”
É claro que mesmo a modernidade tem mantido certos padrões imperiais, mas já não se encontram geralmente as justificativas religiosas antigas. Pelo contrário, é sempre em nome da expansão material, maculando tantas vezes as culturas que preservam ainda tradições sagradas ou naturalistas, numa malversação completa do sentido universalista do império solar, afrontando seja a natureza como a espiritualidade, base e meta da vida que são...
“A idéia moderna da ‘civilização’ não carece de relação histórica com a idéia tradicional do ‘império’; mas a ‘ordem’ tem se transformado em algo puramente humano e profano por completo, como, por outra parte o demonstra a idéia de ‘progresso’, que é a negação mesma de qualquer origem celestial; de fato, a ‘civilização’ não é senão o refinamento cidadão no marco de uma perspectiva mundana e mercantil, o que explica sua hostilidade tanto para a natureza virgem como para a religião. Segundo os critérios da “civilização”, o ermitão contemplativo –que representa a espiritualidade humana e ao mesmo tempo a santidade da natureza virgem– não pode ser mais que uma espécie de ‘selvagem’, quando na realidade é o testemunho terrestre do Céu.”
Poder Temporal e Poder Espiritual
Esta secularização resulta de um complexo processo dialético entre poder temporal e religioso, que terminou quase banindo o fundo espiritual da Civilização. Tal dicotomia é própria da época fragmentária das instituições que foi toda a Era Cristã, nas Idades de Bronze e de Ferro da Civilização.
“Estas considerações nos permitem fazer neste momento algumas precisões sobre a complexidade da autoridade na Cristandade do Ocidente. O imperador encarna frente ao Papa o poder temporal, mas isto não é tudo; representa também, pelo fato de sua origem pré-cristã e não obstante celeste,*** um aspecto de universalidade, enquanto que o Papa se identifica por sua função unicamente à religião cristã.”
Santo Tomás de Aquino formularia em A Monar quia, a doutrina da subserviência do poder real ao Papado, imagem do Império divino que é em sua Uni cidade. Mas a virtual divisão de poderes resultava então, de não ser o reino de Cristo deste mundo naquele período ou idade histórica, ao contrário de certas tradições "pagãs" que tinham em vista épocas de maior integração, passadas ou futura. Prossigamos, todavia:
“Os muçulmanos na Espanha não seriam perseguidos senão a partir do momento em que o clero havia chegado a ser demasiado poderoso frente ao poder temporal; este, que é competência do imperador, representa neste caso a universalidade e o ‘realismo’ e, portanto, a ‘tolerância’, e por conseqüência também, pela força das coisas, certo elemento de sabedoria. Esta ambigüidade da função imperial –da que os imperadores tiveram consciência em um ou noutro nível– explica em parte o que poderíamos denominar o tradicional desequilíbrio da Cristandade; e poderia dizer-se que o Papa reconheceu esta ambigüidade**** –ou este aspecto de superioridade que paradoxalmente acompanha a inferioridade– ao prostrar-se ante Carlos Magno após sua coroação.”*****
Carlos Magno
Tudo isto reflete a complexidade da relação entre poder real e poder sacerdotal, no contexto profundamente dicotomizado da Era de Peixes, gerando alianças muitas vezes frágeis e instáveis. É um fato que a religião ostenta a condição humana mais elevada; não obstante, vale notar que a classe-dharma do ciclo áryo, era realmente a aristocracia -tal como na nova raça que surge a partir de 2012, será efetivamente a do sacerdócio.
Com relação ao episódio citado acima, na verdade o ato do Papa Leão III foi um gesto de extrema argúcia da Igreja, simbolizando o espírito de adaptação que animaria esta dinâmica instituição durante toda a Idade Média, e mais além. A Igreja sempre teve necessidade de apoiar-se no poder temporal. A soma de dois fatores, a ascensão do Cristianismo e as sucessivas invasões bárbaras do Norte na Europa, terminariam minando de morte o Império Romano, e desde aí, com o desmantelamento da exímia organização imperial romana, teve início um período de trevas na Civilização, onde a pouca luz que havia se originava realmente dos claustros e das universidades católicas (como também ocorreu no Tibete recente).
A chegada dos bárbaros trouxe um novo vigor à Cristandade, resgatando a sua dimensão aristocrática. Adotando instituições locais como o feudalismo e a própria religião européia, estes bárbaros não apenas racharam o Islã em batalhas memoráveis como Poitiers, vencida pelo rei franco Carlos Martel (avô de Carlos Magno), como traziam certas tradições reais que uniam vínculos sagrados (o “aspecto de universalidade” pagã de que trata Schuon, acima). Ora, Carlos Magno julgava dispensável a ‘benção’ da Igreja para o seu Império, e qual não foi a sua surpresa quando o Papa o coroou, algo informalmente, numa simples Missa de Natal! Fazendo isto, o Papa pode subordinar de certa forma o Império do Ocidente a Roma -pelo menos, até que a própria Igreja decaísse profundamente e os reis recuperassem uma moral superior.
O "Mal Menor" imperial e a falácia anárquica
De qualquer forma, o espírito imperial teve em muitos casos um sentido "protetor", mesmo que, como é "natural", tantas vezes isto tenha sido usado como subterfúgio, como observamos inclusive em tempos muito recentes...
“O imperialismo pode vir do céu ou simplesmente da terra, ou mesmo do inferno; em qualquer caso, é certo que a humanidade não pode manter-se dividida numa pulverização de tribos independentes; os maus se arrojariam inevitavelmente sobre os bons e o resultado seria u’a humanidade oprimida pelos maus e, portanto, o pior dos imperialismos. O imperialismo dos bons, se assim se pode dizer, constitui-se pois numa espécie de guerra preventiva inevitável e providencial; sem ele não é concebível nenhuma grande civilização.”******
Pode-se dizer que tudo isto representa uma espécie de "mal menor", ou mesmo um "mal necessário" devido à própria imperfeição humana, pelo menos ao nível de cristandade histórica. De certa forma, a opção tem sido as trevas da desordem social e a falta de organização em geral.
“Se nos fazem a observação de que tudo isto não nos faz sair da imperfeição humana o aceitamos; longe de preconizar um ‘angelismo’ quimérico, registramos o fato de que o homem sempre é o homem desde que as coletividades com seus interesses e paixões entram em jogo; os condutores de homens estão absolutamente obrigados a ter isto em conta, ainda que desgoste àqueles ‘idealistas’ que estimam que a ‘pureza’ de uma religião consiste em suicidar-se.”
Devemos então ser realistas e reconhecer a interdependência dos poderes, quando ela não pode ser realmente unificada como seria o ideal sinárquico. De resto, o apoio mútuo tem servido sempre para legitimar o poder temporal e, reciprocamente, para difundir a religião, resultando num Todo que se revela razoavelmente positivo:
“E isto nos conduz a uma verdade que está demasiado perdida de vista pelos próprios crentes: que a religião como fato coletivo forçosamente se apóia sobre o que a sustém de uma maneira ou de outra, sem por isto perder nada de seu conteúdo doutrinal e sacramental nem da imparcialidade que resulta disto; pois uma coisa é a Igreja como organismo social e outra o depósito divino, o qual subsiste por definição mais além das intrigas e servidões da natureza humana individual e coletiva. Querer modificar o arraigo terrestre da Igreja –arraigo que o fenômeno da santidade compensa com vantagens– leva a deteriorar a religião no que tem de essencial, conforme a receita ‘idealista’ segundo a qual o meio mais seguro de cura é matar o paciente.”
Neste ponto, o sábio investe contras as tentativas modernas ou recentes, no sentido de banir a religião e promover uma sociedade secular "superior" e "pura", independente do sagrado e da ordem religiosa – uma utopia que, de resto, já se revelou vã, porque peca por pretender dispensar a intermediação superior, quando na verdade a verdadeira vocação espiritual é algo raro e nobre e o princípio de hierarquia tampouco pode ser dispensado.
“Em nossos dias, na intenção de elevar a sociedade humana ao nível do ideal religioso, se rebaixa a religião ao nível do que é humanamente acessível e racionalmente realizável, mas que nada é, tanto desde o ponto de vista de nossa inteligência integral como de nossas possibilidades de imortalidade. O exclusivamente humano, longe de poder-se manter em equilíbrio, conduz sempre ao infra-humano.”
Cosmologia e Escatologia
Volta então Schuon, a repisar o espírito cosmológico e cíclico dos Antigos, para tratar do sentido de Finalidade superior que animava estes esforços de civilização sagrada. Para o espírito religioso, as transformações podem ser vistas como progresso, pois se o progresso é tolerado em nível global, é porque já pode ser considerado um quadro final escatológico no qual, sem dúvida, a intervenção divina se torna iminente e até providencial...
“Para os mundos tradicionais, situar-se no espaço e no tempo significa, respectivamente, colocar-se dentro de uma cosmologia e uma escatologia; o tempo não tem sentido mais que pela perfeição de origem que se trata de manter e com vistas ao estalido final que nos projete quase sem transição aos pés de Deus. Se no tempo às vezes ocorrem desenvolvimentos que se poderiam tomar por progressos caso se lhes isolasse do conjunto –na formulação doutrinal, por exemplo, ou sobretudo na arte que tem necessidade do tempo e da experiência para madurar– nunca é porque na Tradição se suponha que chegue a ser diferente ou melhor, senão pelo contrário, porque quer permanecer ela mesma de modo completo ou ‘chegar a ser o que é’, ou com outras palavras: porque a humanidade tradicional quer manifestar ou exteriorizar em um certo plano o que traz em si mesma e corre o risco de perder, aumentando este perigo com o desenvolvimento do ciclo que forçosamente conduz à decadência e ao Juízo.”
A Austeridade e crescimento espiritual
O contraste entre simplicidade e refinamento é um dos traços que, paradoxalmente, pode revelar o índice da espiritualidade. O espírito franciscano, que reviveu o despojamento do Cristo, na pobreza e no espírito de comunhão da cristandade primitiva, pode remodelar a Igreja. Mas com a aproximação do poder temporal, sempre vimos o nascimento da tradução exterior do espírito e, quiçá, a perda dos elos mais simples e a pureza original.
“É, em soma, toda nossa crescente debilidade e com ela o risco do esquecimento e da traição, o que nos obriga a exteriorizar ou fazer explícito o que na origem estava incluído numa perfeição interior e implícita; São Paulo não tinha necessidade nem do tomismo nem das catedrais, pois todas as profundidades e todos os esplendores se encontravam em si mesmo e ao seu redor na santidade da comunidade primitiva. E isto, longe de sustentar a iconoclastia de qualquer gênero, se volta perfeitamente contra ela: as épocas mais ou menos tardias –e a Idade Média era uma delas– têm necessidade de uma maneira imperiosa das exteriorizações e desenvolvimentos. Exatamente como a água de uma fonte, a fim de perder-se no curso de seu caminho, necessita um canal feito pela natureza ou a mão do homem; e assim como o canal não transforma a água nem se espera que o faça –pois nenhuma água é melhor que a água do manancial–, as exteriorizações e desenvolvimentos do patrimônio espiritual estão, não para alterar este último, senão para transmití-lo da maneira mais íntegra e eficaz possível.”
O homem moderno olha para trás com temor e reprovação, sem ter em conta o que eram os valores e as conquistas espirituais da Antiguidade. As próprias dificuldades da vida representavam para o homem antigo um motivo para olhar para Deus. E não tem sido este sempre o sentido das "provações" do caminho iniciático? É certo que o religioso é vocacional; mas também é verdade que uma certa austeridade sempre será positiva –sobretudo quando tivermos a Natureza por moldura...
“Nos tempos antigos, tão desacreditados em nossa época, os rigores da existência terrestre, incluída a perversidade dos homens, eram aceitos no final das contas como uma fatalidade inelutável e, por outra parte, se cria com razão que é impossível aboli-los de fato; em meio às provas da vida não se esqueciam as do mais além, e além disto se admitia que o homem tem necessidade aqui embaixo tanto do sofrimento como do prazer e que uma coletividade não pode manter-se no temor a Deus e na piedade apenas no contato com as satisfações...”
O excessivo processo civilizatório e a criação de luxo e facilidades tende, pelo contrário, a promover a decadência moral. Mas também é verdade que a Civilização conheceu Idades de Ouro em que eram compatíveis, num nível superior de civilização, um conforto relativamente elevado e também uma espiritualidade crescente. A chave, para isto, seria a definição de instituições solares, assim como o respeito e a organização do povo em torno destes valores sagrados.
“À luz desta sabedoria elementar, um progresso condicionado pela indiferença espiritual e a idolatria do bem-estar tomado como um fim em si mesmo, não poderia constituir uma vantagem real, quer dizer, proporcionada à nossa natureza total e a nosso núcleo imortal... a civilização moderna dá para quitar; dá o mundo mas quita a Deus: e isto é o que compromete seu dom de mundo.”
Quer dizer, como já temos bem claro em nossos dias, a falsa civilização do materialismo, compromete a harmonia do mundo e toda a possibilidade de nele se viver. O conforto artificial cobra um preço muito alto, começando por roubar a alma e depois por desalojar o próprio mundo dos horizontes da raça. Por isto toda Kali Yuga termina num cataclismo ambiental que, não obstante, depura a Terra, porque toda a crise contém as sementes da sua regeneração. Prossegue o autor:
“Em nossos dias se tem mais que nunca a tendência a reduzir a felicidade à segurança econômica –pelo mais, insaciável face à criação indefinida de necessidades artificiais e a baixa mística da inveja–, mas o que se perde totalmente de vista ao projetar esta perspectiva no passado é que o ofício tradicional e o contato com a natureza e as coisas naturais são os fatores essenciais da felicidade humana. Semelhantes fatores desaparecem na indústria, que exige com demasiada freqüência, se não sempre, um ambiente desumano e manipulações quase ‘abstratas’, gestos sem inteligibilidade e sem alma, tudo isto dentro de uma atmosfera de astúcia congelada; chegando-se sem dúvida às antípodas do que o Evangelho entende ao ordenar o ‘fazer-se como crianças’ e não ‘preocupar-se com o porvir’.”
Podemos caracterizar o “ofício tradicional” dentro das classes tradicionais: servidor, mercador, guerreiro e sacerdote. Tudo isto enquadrado pelos recursos naturais e sem maior apelo à industrialização. De fato, esta austeridade chegou a gerar toda uma filosofia de renúncia que gerou o próprio espírito da Idade Média, na medida em que levava a população para os claustros, culminando com a criação das Ordens de cavalarias e seu emprego nas “guerras santas”. Estes formaram o espírito que mais tarde edificaria a nobreza das novas Monarquias nacionais. Num certo sentido, a cavalaria expressa o grande ideal de uma época do mundo: a nobreza.
“Para o antigo cavaleiro não havia no fundo mais que esta alternativa: o risco da morte ou a renúncia ao mundo; a grandeza da responsabilidade, do risco ou do sacrifício, coincide com a qualidade da ‘nobreza’; viver nobremente é viver em companhia da morte, seja carnal ou espiritual. O cavaleiro não tinha o direito de perder de vista as fissuras da existência; obrigado a ver as coisas desde o alto, sempre devia roçar com seu nada. Ademais, para poder dominar aos outros é preciso saber dominar-se a si mesmo; a disciplina interior constitui a qualificação essencial para as funções de chefe, juiz e guerreiro. A nobreza verdadeira, que pelo mais não poderia ser o monopólio de uma função, implica a consciência penetrante da natureza das coisas ao mesmo tempo que um generoso dom de si mesmo, excluindo tanto as quimeras como as baixezas.”
Assim, o guerreiro é um nobre e sua espada é uma balança, sempre pronta a pesar o seu valor. O guerreiro busca o equilíbrio entre o céu e a terra, emergindo assim como um intermediário ideal para conectar a Hierarquia e servir como líder nas nações. Daí será sua tarefa capital numa sociedade, a tal ponto que a Idade Média podia prescindir da classe dos comerciantes, mas não podia dispensar os cavaleiros, sob pena daquele mundo sucumbir interna a externamente.
Da obediência religiosa
A anarquia é um traço incompreensível à Tradição, pois traduz um princípio de caos, de desordem e de alienação. Pelo contrário, a unidade da ordem tradicional, demanda uma participação e a integração de todos. Onde existe a primazia do cânone, não há espaço para a “heresia da separatividade”. A submissão à autoridade legítima, tem um sentido superior porque se encontra direcionado: 1. ao sagrado, 2. ao coletivo. E sempre nesta ordem.
“Estas considerações nos conduzem ao problema crucial da obediência, tão essencial nas civilizações normais e tão pouco compreendida pelos modernos, que no entanto a admitem sem esforço quando se trata da disciplina coletiva, ainda que fosse em detrimento, em certas ocasiões, dos direitos espirituais mais elementares. A obediência é em si mesma um meio de perfeição interior, à condição de que esteja inteiramente emoldurada pela religião, como sucede em todos os mundos tradicionais. Neste marco, o homem sempre deve obedecer de qualquer modo a alguém ou algo, ainda quando fosse unicamente à Lei Sagrada e à consciência se se trata de um príncipe ou um pontífice; nada nem ninguém é independente de Deus.
A hierarquia social é um reflexo da “obediência interior” das classes superiores, sua capacidade inata de seguir os ensinamentos dos profetas, como aquilo que unicamente as define efetivamente como tal, ao lado da sua unidade operativa inerente.
“A subordinação das mulheres, das crianças, dos inferiores e dos servidores se inserta com toda a normalidade dentro do sistema de obediências múltiplas como que está formada a sociedade religiosa; a dependência do próximo pode ser um destino penoso, mas sempre tem um sentido religioso, como também a pobreza, que implica por sua natureza um significado semelhante. Desde o ponto de vista da religião, os ricos e os independentes nunca são por definição os felizes... Por uma parte, a religião está para transformar aos homens que querem deixar-se transformar, mas por outra, deve tomar aos homens tal como são, com todos seus direitos naturais e seus defeitos coletivamente inarraigáveis, sob pena de não poder subsistir em um meio humano.”
O homem tem um plano divino a cumprir na terra. Esquecer do Criador é tornar em nada a existência. Ou, como diz a Bíblia, são vidas que servem apenas como a lenha da fogueira, nunca como um fim em si mesmas. O que importa em qualquer civilização, é unicamente aquilo que é realizado em nome do Superior.
“Nesta ordem de idéias há outra reflexão que se impõe, goste-se ou não: uma sociedade não apresenta nenhum valor por si mesma ou pelo simples fato de sua existência; disto resulta que as virtudes sociais nada são por si mesmas fora do contexto espiritual que as orienta para nossos fins últimos; pretender o contrário é falsear a própria definição do homem e do humano. A Lei suprema é o amor perfeito de Deus –amor que deve comprometer todo nosso ser, segundo as Escrituras–, e a segunda Lei, a do amor ao próximo, é ‘semelhante’ à primeira; agora bem, ‘semelhante’ não significa ‘equivalente’ e muito menos ‘superior’, senão ‘do mesmo espírito’: Cristo quer dizer que o amor de Deus se manifesta extrinsecamente pelo amor ao próximo, ali onde existe um próximo, quer dizer: não podemos amar a Deus odiando a nossos semelhantes. Conforme nossa natureza humana integral o amor ao próximo não é nada sem o amor de Deus, retira todo o conteúdo deste amor e não tem sentido senão por ele; sem dúvida, amar a criatura é igualmente uma forma de amar ao Criador, mas com a expressa condição de que sua base seja o amor direto de Deus, pois senão, a segunda Lei não seria a segunda, e sim a primeira... Esta relação se transluz –às vezes de maneira imperfeita, mas sempre reconhecível quanto ao princípio–, dentro de todas as civilizações tradicionais.”
Com isto, Schuon que enfatizar que amar a humanidade sem amar o Criador, pouco ou nenhum valor teria, porque isentaria de transcendência este amor, e seria quase um sentimentalismo e um apego, de todo modo um arroubo que oculta um orgulho e uma ignorância no tocante ao superior, apesar de alguém manifestar bons sentimentos. Aquele que realmente se preocupa com o mundo é o Salvador, são os divinos renunciantes, os Bodhisatwas, capaz até mesmo de ressuscitar por amor do próximo, capacitando-se assim a salvar a todos. Mas, em todas as épocas, existe a presunção dos fariseus que se julgam sábios, embora ignorem as grandes verdades reveladas e anunciadas, pseudo-iniciados que emergen nas épocas de transição sob o chamado geral da crise, cegos de um olho que se julgam condutores de alguns cegos completos, sem mais importar o resto do mundo...
De fato, a relativa primazia do Primeiro Mandamento, é que dá alicerce ao Segundo e a outros que eventualmente surgirão, pois podemos amar ao próximo de forma especial porque amamos a Deus nele, tal como na saudação hindu Namastê, ou “o Deus em mim saúda o Deus em você”.
Neste caso, os animais entram naturalmente numa outra categoria, assim como o conjunto da Criação que, todavia, também se destina, numa outra esfera, a uma nova revelação. De fato, considerar o ser humano como detentor da semente do sagrado, ainda não soa tão difícil porque existem os relatos dos mestres e os exemplos dos santos. Detentor do livre-arbítrio, o ser humano pode se equiparar a anjos e a demônios. Já a Criação, isto é, a “Natureza naturata”, integra uma esfera todavia mais misteriosa que o ser humano tenderia a considerar “inferior” por não expressar um livre-arbítrio. Contudo, haveria muito a conhecer e a repensar também aqui, porque a Natureza entra numa outra categoria de coisas, mas integra não obstante o Plano geral da evolução e, acima de tudo, também está ligada à força suprema no Universo, que é Deus.
Quando olhamos um automóvel, podemos dizer que o único realmente dinâmico ali é o motor e as rodas, ou mesmo algo mais. Talvez para um inseto instalado próximo às rodas, estas sejam as únicas que para ele tem algum dinamismo. Porém, numa visão maior e exterior, todo o arcabouço do carro integra uma elaboração, se move e tem a sua função.
Assim, é possível ver Deus em tudo, se se quer, pois tudo no Universo tem movimento e a semente da vida. O homem que tem esta consciência, pode caminhar no rumo da sua evolução com segurança, porque está no caminho da Verdade, mesmo que esta seja revelada aos poucos. Conclui o autor:
“Nenhum mundo é perfeito, mas qualquer mundo humano deve possuir meios de perfeição. Um mundo tem valor e legitimidade pelo que realiza pelo amor a Deus e nada mais; pelo ‘amor de Deus’ entendemos em primeiro lugar a eleição da Verdade e depois a direção da vontade: a Verdade que nos torna conscientes do real absoluto e transcendente –seja pessoal ou suprapessoal– e a vontade que se liga a isto e reconhece sua própria essência sobrenatural e seus fins últimos.”
Uma exegese de Luís A. W. Salvi, da obra "Tradição & Transmissão", Editorial Agartha
* Frithjof Schuon, Sobre los Mundos Antiguos, Biblioteca de Estudios Tradicionales, Taurus Ed., Madrid, Espanha. Os parágrafos transcritos pertencem ao Capítulo 1, Mirada Sobre los Mundos Antigüos.
** "Esse é o homem, esse é aquele de que tantas vezes tens ouvido a prometida chegada, César Augusto, filho de um Deus, que fundará de novo a idade de ouro nos campos donde Saturno reinou antanho e que estenderá seu império até os Garamantes e sobre os Indus" (Eneida VI, 791-5). César preparou um mundo para o reino de Cristo. Assinalemos que Dante coloca os assasinos de César no mais profundo do inferno, em companhia de Judas. Cf. "Divus Julius Caesar", de Adrian Paterson, em Les Études Traditionales, junho de 1940.”
*** “Dante não hesita em servir-se desta origem sobrehumana para sustentar sua doutrina da monarquia imperial.”
**** “Isto não apresenta dúvidas nem no que se refere a Constantino nem a Carlos Magno.”
***** “Há uma curiosa relação –seja dito de passagem– entre a função imperial e o papel do louco da corte, e esta relação parece manifestar-se no fato de que a indumentária dos loucos, como a de alguns imperadores, estava adornada com campanhias, à semelhança do vestido sagrado do Grande Sacerdote: o papel do louco consistia na sua origem em dizer publicamente o que ninguém se permitia expressar, e introduzir deste modo um elemento de verdade num mundo forçosamente obrigado a inevitáveis convenções; de modo que esta função, queira-se ou não, faz pensar na sapiência ou no esoterismo propriamente dito, que à sua maneira rompe as "formas" em nome do "espírito que sopra onde quer".
****** “Poderia parecer que a decadência espiritual dos romanos se opusesse a uma missão de império, mas não foi assim, posto que este povo possuía as qualidades de força e generosidade –ou tolerância– requeridas para este papel providencial. Roma perseguiu aos cristãos porque estes ameaçavam tudo o que, aos olhos dos antigos, constituía Roma; se Diocleciano houvesse podido prever o edito de Teodósio abolindo a religião romana, não haveria atuado de modo diferente do que fez.”
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